Por Beatriz Drague Ramos/OPAN
Há cerca de um mês, indígenas do povo Umutina, no município de Barra do Bugres (MT), sofreram com o falecimento de uma anciã de 74 anos por Covid-19. Ela morreu sem receber o atendimento médico adequado, enquanto aguardava uma vaga em uma Unidade de Terapia Intensiva (UTI). Além da dor da perda de um parente, o óbito de uma pessoa idosa significa o risco de desaparecimento de tradições, parte essencial da cultura única de cada povo. E essa é uma realidade que assola tantos outros indígenas do Brasil.
A entrada do novo coronavírus entre o povo Umutina expôs, novamente, um dos gargalos da saúde indígena frente à pandemia: a falta de investimento em ações de busca precoce de possíveis casos de Covid-19, uma das funções desempenhadas pelos Agentes indígenas de Saúde (AIS). Os Umutina chegaram a solicitar ao Distrito Sanitário Especial Indígena (DSEI) Cuiabá a contratação de um profissional especializado para atuar no território. Entretanto, o pedido, feito por meio de carta, não foi respondido até a publicação desta reportagem.
Segundo informações de um profissional do próprio DSEI, que preferiu não se identificar, o déficit de profissionais no local é grande. Faltam ao menos 100 agentes nas aldeias que abrangem o distrito. Atualmente, 82 AIS atuam na região. Os profissionais atendem uma população de 8.667 pessoas, distribuídas em 178 aldeias. Os indígenas em questão são das etnias Enawenê Nawê, Kurâ Bakairi, Boe Bororo, Haliti Paresi, Nambikwara, Manoki, Myky, Guató, Balatiponé-Umutina e Chiquitano, de acordo com o Plano Distrital de Saúde Indígena do DSEI Cuiabá, elaborado em 2019.
Dados obtidos pela Operação Amazônia Nativa (OPAN), via Lei de Acesso à Informação (LAI), mostram que o Brasil conta hoje com 4.553 AIS. Desses, apenas 364 atuam em Mato Grosso. O número é baixo, pois mais de 50 mil pessoas declaram-se indígenas no estado. A Sesai também informou que, de março a junho deste ano, 11 novos AIS foram contratados para atuar na unidade federativa.
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Distribuição de AIS por povos indígenas, em Cuiabá
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A falta dos AIS também chama a atenção entre os Enawenê-Nawê, onde apenas três agentes cuidam de 951 pessoas. A situação se repete entre os Chiquitanos. O povo conta com três profissionais para atender 288 pessoas, distribuídas em seis aldeias. Já os Kura Bakairi têm o auxílio de seis AIS. Os agentes zelam pela saúde de 730 indígenas, divididos em 11 aldeias.
Indígenas Umutina se deslocam para conseguir atendimento
Infectado pelo novo coronavírus, o escritor Ariabo Kezo, indígena Umutina de 31 anos, está internado na Santa Casa de Cuiabá. O escritor conta que teve sintomas da Covid-19 por 11 dias, até decidir buscar ajuda médica. A primeira opção seria o Hospital Municipal de Barra do Bugres. No entanto, a unidade está fechada para o tratamento de casos graves da doença. Assim, Ariabo precisou seguir em viagem, por aproximadamente duas horas, para buscar atendimento na rede hospitalar da capital. O transporte foi feito por um motorista da rede de profissionais que atuam na saúde indígena local permanente.
Em Cuiabá, Ariabo foi direcionado para a observação na Arena Pantanal. Outra transferência precisou ser feita até que o indígena – que já apresentava comprometimento em 50% do pulmão e sintomas de falta de ar e febre – fosse internado. Ele está na Santa Casa da capital, onde seu irmão também foi atendido após ser diagnosticado com a Covid-19, mas já teve alta e se recupera em casa. Outros familiares do escritor contraíram a doença. O agravante da situação é que os seus parentes possuem comorbidades. Assim, também precisaram recorrer aos serviços médicos da capital, após desenvolver sintomas graves.
De acordo com Ariabo, os próprios profissionais de saúde local foram atingidos pelo novo coronavírus, o que prejudicou o atendimento dentro dos territórios. “O adoecimento dos funcionários inviabilizou ainda mais o atendimento. Mesmo nessa situação, eles estão fazendo o esforço necessário para fornecer orientações. É preciso estar ciente de que a responsabilidade não é só da saúde local, o DSEI tinha que estar mais presente, montar uma estrutura dentro do território. Tinha que ter um monitoramento permanente. O médico tinha que estar lá integralmente, porque estamos em uma situação pandêmica, que exige atenção especial”, critica.
O indígena ainda agradece o bom trabalho dos profissionais de saúde no combate à pandemia e afirma se sentir abandonado por parte dos entes estatais. “Eu agradeço a cada um dos profissionais. Mas não é por sentir gratidão que eu devo aceitar ser submetido a uma situação como essa, de abandono. Uma família inteira poderia ser dizimada por esse vírus”, reclama. ”Até agora não vejo uma mudança no atendimento. O governo federal e os setores da saúde têm culpa nisso, eles têm responsabilidades sobre nós. Temos o direito de sermos atendidos, de ter acesso à saúde de qualidade, de nos manifestar. O Ministério Público também deveria atuar nesse sentido”, completa.
Ariabo Kezo conta que os próprios moradores realizaram barreiras sanitárias e que, por conta disso, a situação da aldeia frente à Covid-19 esteve controlada até julho. Em agosto, os casos confirmados de Covid-19 saltaram de 25, no dia 6, para 50 casos confirmados e 10 suspeitos, de acordo com dados recentes do Conselho Local de Saúde Umutina, do dia 20 de agosto. Mesmo após tentativa de diálogo com o DSEI Cuiabá, os indígenas seguem convivendo com a baixa assistência na saúde, por contarem com poucos profissionais de atenção primária no local.
“Temos essa preocupação com pessoas idosas, que devem ter um acompanhamento diário. Cremos que essa atenção não está sendo dada e deve ser preenchida. A partir disso, escrevemos um documento para reivindicar a contratação de um agente indígena de saúde local, para acompanhar mais próximo essa demanda. Queremos uma estrutura montada para o atendimento da Covid-19 no nosso território. O período pandêmico complica mais a situação. A saúde, no contexto geral, está precarizada e nós somos afetados por essa precarização”, lamenta.
Integrantes das equipes multidisciplinares de saúde, os AIS desempenham um papel crucial na saúde indígena diferenciada, como explica a antropóloga Luciane Ouriques. “Eles são responsáveis pela realização das ações de atenção primária à saúde nos territórios e possuem uma atribuição fundamental para a efetivação do direito dos povos, a atenção diferenciada. São eles que fazem a mediação entre os saberes e práticas das suas comunidades e os conhecimentos técnico-científicos, com os quais operam os profissionais das equipes de saúde. No entanto, hoje nem todas as aldeias contam com agentes indígenas de saúde, como é o caso do DSEI Xavante e também do DSEI Cuiabá”.
De acordo com o Índice de Vulnerabilidade Demográfica e Infraestrutural das Terras Indígenas à Covid-19 (IVDIC), o DSEI Cuiabá atende duas terras indígenas que apresentam vulnerabilidade crítica à Covid-19: a TI Enawenê-Nawê, onde vive o povo de recente contato Enawenê-Nawê, e a TI Portal do Encantado, onde residem os Chiquitano. O DSEI Xavante, por sua vez, também é identificado como um dos distritos que apresentam vulnerabilidade crítica para a Covid-19.
Agente indígena de saúde na aldeia de Barra do Bugres, Glaucio Umutina iniciou sua carreira a partir de um concurso prestado no DSEI Cuiabá, há três anos. Desde então, o profissional atua sem capacitação específica na área. No entanto, Glaucio transformou a experiência prática e o amor pelo trabalho desenvolvido em ferramentas de especialização.
“Durante esse tempo de trabalho, não tive um curso de capacitação para trabalhar nessa área, mas encaro os desafios de cabeça erguida, porque gosto do que faço. É uma função muito importante nas terras indígenas, devido à grande quantidade de idosos, gestantes e crianças. A minha função é mapear todos os idosos, verificar as condições de trabalho, de alimentação. Também acompanho as gestantes e a pesagem das crianças, tudo isso requer muita atenção, porque mexe com vidas. Com a pandemia, o trabalho ficou redobrado. Agora também fazemos a orientação e o mapeamento das pessoas com suspeita de Covid-19”.
A escassez de cursos de capacitação para os que pretendem exercer a função de agente indígena de saúde é também um dos problemas citados por Luciane Ouriques, ao se deparar com a precarização da saúde diferenciada. “A maioria dos AIS não foi capacitada para atuar no enfrentamento do novo coronavírus. Os cursos que estão disponíveis são on-line e nem todos os profissionais possuem acesso à internet. Essas limitações da atenção primária tendem a comprometer as ações de prevenção e contenção da Covid-19 no contexto das aldeias”, explica.
A antropóloga ainda recomenda a contratação imediata e a qualificação dos profissionais. “Deve haver investimento tanto na contratação dos agentes indígenas de saúde, para garantir que todas as aldeias tenham esses profissionais de saúde, quanto na formação desses agentes para o enfrentamento da Covid-19. Isso é estratégico no que se refere a contenção da pandemia junto aos povos indígenas no Brasil”.
Procurada, a Secretaria Especial de Saúde Indígena (Sesai) afirmou que “recomenda a realização de busca ativa de indivíduos que apresentem sinais e sintomas de Síndrome Gripal (SG) e Síndrome Respiratório Aguda Grave (SRAG). A busca ativa é realizada pela Equipe Multidisciplinar de Saúde Indígena (EMSI), da qual o Agente Indígena de Saúde (AIS) faz parte. Desta forma, a atividade não é realizada de forma isolada pelo AIS, mas sim integrada e articulada com os demais profissionais que compõe a EMSI”. O DSEI Cuiabá não respondeu as questões solicitadas até a publicação desta reportagem.
*Em 23 de agosto, após a publicação da reportagem, o escritor Ariabo Kezo recebeu alta médica da equipe de saúde da Santa Casa de Cuiabá.