No mês dedicado mundialmente a chamar a atenção para a importância das Zonas Úmidas, a lei 11.861/22, que flexibiliza a proteção ao Pantanal, volta ao foco com o julgamento de Ação Direta de Inconstitucionalidade. O Ministério Público, com apoio de três organizações da sociedade civil que ingressaram como amicus curiae no processo, alertam para as irregularidades jurídicas que ameaçam o bioma. O julgamento da ADI pelo Tribunal de Justiça de Mato Grosso será na quinta-feira (8).
Dentre vários pontos, o Instituto Centro de Vida (ICV), Associação Sociocultural e Ambiental Fé e Vida e o Instituto de Pesquisa e Educação Ambiental (Instituto Gaia Pantanal) alertam que, em tempos de crise climática, processos em curso como a redução substancial da superfície da água do Pantanal, supressão de vegetação e alertas crescentes de desmatamento, podem se intensificar com a vigência da lei.
As organizações afirmam que além de flexibilizar as regras de proteção ao Pantanal a legislação, dentre vários pontos, fere a Constituição Federal, a Constituição Estadual, a legislação federal e a Convenção Ramsar sobre áreas úmidas e por isso deve ser considerada integralmente inconstitucional.
O Pantanal é um bioma especialmente protegido pela Constituição Federal e pelas Constituições de Mato Grosso e Mato Grosso do Sul. Além disso, o Código Florestal, no seu artigo 10, estabelece que as planícies alagáveis são áreas de uso restrito que devem ser manejadas de forma sustentável com base em critérios técnicos elaborados por instituições oficiais de pesquisa.
“Dessa forma, a norma geral federal foi violada pelo Estado de Mato Grosso ao inserir na Lei de Gestão do Pantanal alterações significativas em áreas definidas pelo Código Florestal e que comprometem a sustentabilidade do bioma.”
Alterações efetivadas pela lei
Entre as alterações introduzidas na lei do Pantanal sem nenhuma fundamentação técnica, que são apontadas no processo, podem ser destacadas:
- A permissão de acesso e uso das Áreas de Preservação Permanente para a pecuária extensiva e restauração de pastagem nativa. Estudos da própria Embrapa, mencionados nas razões apresentadas por entidades da sociedade civil, comprovam que o gado, ao remover a vegetação das margens dos corpos hídricos, submete as áreas ripárias a pisoteio, acelerando, com isso, os processos erosivos nas margens dos rios. Vale ressaltar, é crime destruir ou danificar floresta considerada de preservação permanente, ou mesmo impedir ou dificultar a regeneração natural dessas áreas protegidas.
- Outra alteração sem fundamentação técnica: a permissão de pecuária extensiva e da permanência de sede de fazendas em corixos, meandros de rios, baías e lagoas marginais, cordilheiras, diques marginais naturais, capões de mato e murundus – que também configuram APP. Essa medida contraria a Nota Técnica da Embrapa, que taxativamente recomendou a proibição da remoção de vegetação arbórea e arbustiva nativa presente nas elevações naturais dos campos de murundus, capões e cordilheiras. Não há nenhuma justificativa técnica e nem respaldo na legislação federal para permitir o acesso e uso para a pecuária extensiva e a restauração de pastagem nativa, nas áreas de reserva legal na Planície Alagável. Ou seja, nem mesmo os 35% da Reserva Legal no Pantanal seriam conservados?
- Outra medida tomada sem nenhuma ponderação ou suporte em pesquisa técnica, permitiu que se reduza pela metade os limites das APPs no entorno de baías, lagos e lagoas. Ora, é inquestionável a necessidade de uma proteção ampliada do bioma, como previam os dispositivos revogados pela lei nº 11.861/2022. O interesse público na conservação do bioma justifica uma legislação mais restritiva que a prevista na norma federal, desse modo, a alteração promovida pela lei nº 11.861/2022 fere o princípio constitucional que veda o retrocesso legislativo em matéria ambiental. A alteração legislativa não possui suficiente respaldo científico, e não há justificativa técnica razoável para reduzir a proteção do bioma pantaneiro, sobretudo num contexto de mudanças climáticas e desastres ambientais, como os incêndios noticiados.
- A lei contraria recomendações expressas da EMBRAPA, como a exigência da manutenção de corredores de biodiversidade na fase de planejamento e avaliação de impacto para o licenciamento, e também a expressa exigência de vedação a abertura de canais de drenagem na planície pantaneira, entre outras. Não há como justificar a adoção de medidas que configuram infrações ambientais, especialmente numa área de tamanha importância socioambiental e climática.
- Ao permitir a realização de atividades incompatíveis com as características ecológicas do Pantanal e sua definição como área de uso restrito, a lei nº 11.861/2022 viola dispositivos da Constituição Estadual de MT, da Constituição Federal e da Convenção de Ramsar sobre proteção de áreas úmidas, além do princípio da vedação do retrocesso em matéria ambiental, já reconhecido pelo STF em diversos julgados.
Lei foi elaborada sem embasamento
A consultora jurídica do Observatório Socioambiental de Mato Grosso (Observa-MT), rede na qual está inserido o ICV, Edilene Fernandes, lamentou a falta de embasamento técnico e científico e de impactos socioambientais.
“Temos importantes centros acadêmicos e pesquisadores em Mato Grosso, por exemplo, das universidades Federal e Estadual, que se debruçam a estudar o bioma, que deveriam ter sido consultados. O que não ocorreu. O Governo se firmou em um relatório da Embrapa, mas considerou apenas os pontos convenientes”.
Segundo o grupo que ingressou como amicus curiae, notas técnicas que o Estado alega que subsidiaram a elaboração da lei estadual abordam fundamentalmente a questão do manejo do fogo no Pantanal, o que não foi tratado na lei mencionada; outros assuntos relevantes foram tratados superficialmente e algumas importantes recomendações da Embrapa foram simplesmente ignoradas pelo Poder Legislativo estadual”.
Na contestação, as organizações representadas pelo procurador do Estado e professor catedrático de Direito Ambiental da UFMT (aposentado), Teodoro Irigaray, do escritório Irigaray e Associados – Advocacia Ambiental, destacam que a despeito do que estabelece o Código Florestal (lei de abrangência nacional que deve ser observada pelos Estados na elaboração de leis estaduais), somente uma instituição de pesquisa foi consultada, em um projeto de lei apresentado, discutido e aprovado em apenas 40 dias. Uma lei, que permite práticas que afrontam a norma geral, inclusive a lei de crimes ambientais.
Para ele, a lei 11.861/22, “é, paradoxalmente, uma tentativa de flexibilização dos parâmetros mínimos de sustentabilidade”. que poderá culminar no agravamento dos desastres que ameaçam o Pantanal.
Ameaças reais: Desmatamento, drenos e hidrelétricas
Segundo o advogado Teodoro Irigaray, aos autos da ADI foram juntados diversos documentos técnicos e científicos bem como ponderações jurídicas que demonstram a existência de vários fatores que colocam em risco a perenidade desse importante bioma. Dentre os mais relevantes estão o avanço do desmatamento e os incêndios que infelizmente têm ocorrido com mais frequência.
Nas últimas três décadas foram convertidos para pastagem e agricultura 5,4 milhões de hectares de vegetação nativa no Pantanal, e a lei estadual nº 11.861/2022 pode agravar ainda mais esse quadro. Além disso, dados do INPE apresentam alertas de desmatamento de mais de 83 mil hectares medidos entre agosto de 2023 a janeiro de 2024, o que corresponde a uma média de 15 mil hectares/mês. Na mesma medida em que a vegetação nativa está sendo suprimida, as áreas queimadas adquirem proporções de desastres ambientais. Em 2020, 35% do Pantanal foi consumido pelo fogo; os incêndios aumentaram em 2023, atingindo quase 38% da área, com prejuízos incalculáveis.
E o Pantanal nunca esteve tão seco. Segundo levantamento do MapBiomas divulgado em 2022, o Pantanal é um dos biomas que mais perderam superfície de água entre 1985 e 2022, tendo registrado retração de 81,7%. O pulso de inundação, que é o principal fator de regulação das cheias e da conservação da biodiversidade, está sendo alterado drasticamente não apenas como decorrência das mudanças climáticas, mas também por fatores antrópicos.
Estudos comprovam que um aumento na vazão na hidrelétrica de Manso durante o período das chuvas pode ser suficiente para manter úmida boa parte do Pantanal em Mato Grosso. Ou seja, os órgãos ambientais podem estabelecer o hidrograma de segurança para as hidrelétricas, sobretudo em áreas prioritárias para a conservação. Por que isso não acontece?
Os rios que formam a Bacia do Alto Paraguai estão sendo barrados por 45 hidrelétricas e já existem 124 novos projetos de empreendimentos energéticos, inclusive seis deles no rio Cuiabá. Ainda não há uma avaliação integrada dos impactos cumulativos dessas barragens na piracema e na manutenção do Pantanal enquanto área úmida.
Em outra ação que tramita na Vara Especializada do Meio Ambiente o Ministério Público identificou um total de 1.246 drenos abertos ilegalmente no Pantanal. São mais de 1.224 km de extensão de drenos só no Pantanal que podem ser “regularizados”, conforme Resolução flagrantemente ilegal e inconstitucional aprovada pelo Conselho Estadual do Meio Ambiente de Mato Grosso – CONSEMA.
Embora o Ministério do Meio Ambiente e o CONAMA tenham noticiado que medidas urgentes e excepcionais estão sendo avaliadas, contemplando inclusive a necessidade de suspender autorizações de conversões concedidas sobre áreas do Pantanal, não é difícil imaginar a pressão política que incide sobre os órgãos ambientais e os esforços para impor retrocessos na legislação protetiva do meio ambiente.
“Nossa esperança recai sobre o Tribunal de Justiça de Mato Grosso e também nos tribunais superiores que demonstram séria preocupação com o cenário nacional, no que diz respeito à questão ambiental e climática e no enfrentamento de medidas que colocam em risco a integridade da maior área úmida contínua do planeta, um bioma frágil, patrimônio nacional e da humanidade, onde estão inseridos sítios Ramsar e uma Reserva da Biosfera”, conclui Irigaray.