Por Beatriz Drague Ramos/OPAN
Indígenas das terras Manoki, Menkü, Batelão, Portal do Encantado, Piripkura e Kawahiva do Rio Pardo convivem com focos de calor e desmatamentos ilegais em seus territórios gerados por propriedades privadas localizadas no interior dessas áreas. Esta é uma das conclusões do relatório técnico recém publicado pela Operação Amazônia Nativa (OPAN), que analisou os efeitos de medidas administrativas federais e estaduais publicadas recentemente no país, que pretendiam legalizar fazendas sobrepostas a terras indígenas não homologadas.
O estudo destaca os imóveis rurais inscritos no Cadastro Ambiental Rural (CAR) sobrepostos a seis terras indígenas e a grande concentração de desmatamentos ilegais, identificados dentro desses territórios entre 1998 a 2007 e 2008 a 2018, assim como as queimadas no período de 2019 a 2020.
De acordo com Ricardo Carvalho, indigenista do Programa de Direitos Indígenas, Política Indigenista e Informação à Sociedade da OPAN e um dos autores da pesquisa, foi possível observar um crescimento das declarações de CAR verificadas no Sistema de Gestão Fundiária (Sigef) do Instituto de Colonização e Reforma Agrária (Incra), após a publicação da Instrução Normativa (IN) 09 da Fundação Nacional do Índio (Funai) e do Projeto de Lei Complementar (PLC) nº 17/2020, que tramitou de abril a julho na Assembleia Legislativa de Mato Grosso propondo a legalização dos cadastros sobre as terras indígenas.
“O que mais chamou atenção é o perfil oportunista da maioria desses cadastros, pois foram realizados após a apresentação do PLC 17/2020 e da IN 09 da Funai. No Sigef, muitas inscrições foram submetidas e certificadas mesmo após a decisão da Justiça Federal que suspendeu os efeitos da IN 09 aqui em Mato Grosso, deixando dúvidas com relação ao efeito prático dessa decisão”, aponta Carvalho.
Segundo o relatório, das 60 inscrições analisadas, 58 delas (96%) foram realizadas após a publicação da IN 09 da Funai, que retira as terras indígenas ainda não homologadas do Sigef e do Sistema de Cadastro Ambiental Rural (Sicar), do governo federal.
O crescimento desses cadastros também está alinhado ao início da tramitação do PLC 17/2020, em abril de 2020. Em sua primeira versão o projeto autorizava o registro do CAR de propriedades em sobreposição a terras indígenas não homologadas. Após dois meses de pressão da sociedade civil, o texto foi modificado através de um substitutivo que retirou os artigos com interferências às terras indígenas (TI). Ainda assim, a proposta foi aprovada com retrocessos no licenciamento ambiental.
Terras indígenas Manoki e Menkü em disputa
Das 201 propriedades sobrepostas estudadas no relatório, 82 (40,8%) são latifúndios, o que indica interesses de grandes proprietários na exploração das terras indígenas, como é o caso da Terra Indígena Manoki, localizada no município de Brasnorte (MT). Dos 52 imóveis declarados no CAR sobrepostos a TI Manoki, a maioria (51%) são de grandes propriedades.
Há 93 mil hectares inscritos como propriedades ou posses rurais incidindo nesse território, dos quais 79% são cadastros completamente sobrepostos à TI Manoki. O estudo destaca que quando se observam os alertas de focos de calor registrados dentro da terra indígena em 2019 e nos primeiros meses de 2020, nota-se que a tendência de desmatamento continua na porção norte. Porém, nos primeiros meses de 2020, há a predominância dos focos de queimadas na região sudoeste da terra indígena.
Em meio à pandemia do novo coronavírus, foram localizados 19 imóveis cadastrados em sobreposição à TI Manoki. As propriedades que submeteram sua certificação a partir de abril de 2020 totalizam uma área de aproximadamente 21 mil hectares. Ao mesmo tempo em que os cadastros avançaram sobre o território Manoki, os indígenas intensificaram o isolamento social em suas aldeias com a criação de barreiras sanitárias.
A TI Menkü, do povo Myky, tem 67% de sua área sobreposta por imóveis, perfazendo a maior extensão entre os territórios analisados. O povo Myky foi alvo de ações judiciais questionando seu direito à terra, mas em todos os casos a Justiça reconheceu a tradicionalidade de seu território de 146 mil hectares, que aguarda a demarcação física e a homologação presidencial.
O relatório aponta que a TI Menkü tem apresentado diversos focos de calor nos últimos anos, colaborando para para o aumento da degradação do território. De acordo com o estudo, a partir do cruzamento de informações dos focos de calor com os imóveis cadastrados no SIMCAR/MT, um sistema eletrônico de âmbito estadual, destinado à inscrição, consulta, acompanhamento e gerenciamento da situação ambiental dos imóveis rurais, foi constatado que uma mesma propriedade praticou queimadas em 2019 e em 2020. O imóvel possui 57% de sua área total sobreposta à Terra Indígena Menkü.
“Em consulta ao CNPJ do proprietário, constata-se que o imóvel é de uma empresa de São Paulo, que tem entre suas atividades econômicas o cultivo e comércio atacadista de soja, milho e algodão”, alerta o relatório.
Terras Indígenas Batelão e Portal do Encantado
Localizada no centro-norte do estado, entre os municípios de Juara, Nova Canaã do Norte e Tabaporã, a Terra Indígena Batelão é ocupada tradicionalmente pelo povo Kayabi. A TI Batelão possui 40% de seu território sobreposto por imóveis rurais cadastrados no SIMCAR/MT. Com base nos dados do Sigef existem 21 imóveis cadastrados em sobreposição à TI Batelão. Desses, 20 submeteram sua certificação justamente partir de abril de 2020, quando começou a tramitação de medidas legislativas anti-indígenas colocadas em pauta no primeiro semestre.
A TI Batelão também está ameaçada pelo desmatamento ilegal e por focos de focos de calor. Neste ano, três alertas de desmatamento foram emitidos pela Coordenação Geral de Monitoramento Territorial da Funai (CGMT/Funai). O objetivo do desmate foi a abertura de estradas e a expansão de áreas alvo da prática de degradação (corte seletivo) localizadas dentro da TI Batelão.
“Fica clara a estratégia de uso e ocupação do solo. Primeiro fazem o corte seletivo de madeira, queimam a área, criam o boi e começam a queimar o entorno das fazendas, ampliando sua área de pastagem”, explica Ricardo Carvalho.
A Terra Indígena Portal do Encantado está localizada na divisa dos municípios de Pontes e Lacerda, Porto Esperidião e Vila Bela da Santíssima Trindade, em área de fronteira com a Bolívia. De acordo o relatório, no local onde vivem os Chiquitanos 12 imóveis estão cadastrados e sobrepostos à terra indígena, sendo três deles com 100% de área sobreposta, o que já acarretou em ameaças de fazendeiros aos indígenas.
Os dados do desmatamento acumulado mostram que até 2007 houve o desmate de grandes áreas situadas principalmente na região centro-leste. Já de 2008 a 2018, as áreas desmatadas foram reduzidas e dispersadas, concentrando-se na porção leste da terra indígena.
TIs Piripkura e Kawahiva do Rio Pardo, índios isolados e de recente contato
As terras indígenas Piripkura e Kawahiva do Rio Pardo possuem referências confirmadas da presença de índios isolados e de recente contato. A primeira fica entre os municípios de Colniza e Rondolândia, no extremo noroeste de Mato Grosso, e tem três imóveis cadastrados em sobreposição, sendo um deles tem área totalmente sobreposta à terra indígena.
Assim como ocorreu com as terras indígenas citadas anteriormente, as três propriedades sobrepostas à TI Piripkura submeteram sua certificação após a apresentação do PLC n° 17/2020 e enquanto a IN 09 da Funai ainda não havia sido suspensa em Mato Grosso por liminar.
O estudo revela que as queimadas registrados dentro dos limites da TI Piripkura em 2019 ocorreram na região centro norte do território, onde houve grandes desmatamentos entre 2007 e 2018.
Outro local com referência em indígenas isolados é a TI Kawahiva do Rio Pardo, localizada no município de Colniza, no extremo norte de Mato Grosso. Segundo os dados analisados, são aproximadamente 17.300 hectares de imóveis rurais sobrepostos, um deles está totalmente sobreposto.
O estudo revela que “há um desmatamento crescente acompanhando o traçado de uma rodovia estadual, a MT-206, que passa sobreposta ao limite sul da terra indígena”, diz o relatório. Com isso, os focos de queimadas em 2019 seguiram a rota da rodovia MT-206 e localizam-se no limite sudeste, onde o acesso é feito através de uma das estradas vicinais abertas a partir desta rodovia.