
Por Bruna Pinheiro / Formad
De um lado, caminhonetes 4×4, fivelas e correntes de ouro. Do outro lado, estudos científicos e bandeiras de luta. Aparentemente, a discussão sobre o PL 1833/2023 – que tenta reduzir o limite de 300 metros para a aplicação de agrotóxicos para até zero (pequenas propriedades), pode ser entre defensores do agronegócio e trabalhadores do campo. Mas não é. A ciência entra no debate e faz o alerta: o risco é para todos. Trata-se do aumento de casos de contaminação química, diagnósticos de câncer, má formação fetal, intoxicação alimentar e doenças como Alzheimer.

“Agronegócio é a mentira do Brasil”, gritavam jovens assentadas do Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST-MT), que mesmo em menor número, fizeram a diferença na audiência pública na Assembleia Legislativa (ALMT) para discutir o tema nesta terça-feira (18). E mais uma vez, a ciência pode ser ignorada por parlamentares de Mato Grosso, que tentam a qualquer custo aprovar o PL do Veneno. O projeto, de autoria do deputado estadual Gilberto Cattani (PL), já foi aprovado em primeira votação, em setembro de 2024 e de acordo com a agenda da ALMT, deve ser colocado para segunda votação nesta quarta-feira (19). Ao longo dos meses, três substitutivos foram apresentados, discutidos e rejeitados pelos parlamentares. No entanto, o texto ainda persiste e está em apreciação o que reduz o limite para aplicação de agrotóxicos.
Convocada pelo deputado estadual Lúdio Cabral (PT), um dos poucos parlamentares a se manifestar contrário à proposta, a audiência pública durou mais de quatro horas. Cientistas e pesquisadores de instituições estaduais e federais apresentaram estudos e levantamentos a respeito dos impactos de agrotóxicos sobre o meio ambiente e a população. Para defender o projeto, somente um médico com a sua pesquisa (sem publicação científica) encomendada pela Associação Brasileira dos Produtores de Soja (Aprosoja), uma das gigantes do agronegócio no estado.
Professora do Núcleo de Estudos Ambientais e em Saúde do Trabalhador (Neast-UFMT), Marcia Montanari é pesquisadora do assunto há mais de 15 anos e alertou sobre os riscos da exposição química seja pelo consumo de alimentos, proximidade com locais de pulverização e até o uso de roupas contaminadas, já que há pesquisas que comprovam resíduos de agrotóxicos no algodão em Mato Grosso. O Neast-UFMT é uma das organizações filiadas ao Fórum Popular Socioambiental de Mato Grosso (Formad), além de compor coletivos e campanhas nacionais contra o uso inadequado de agrotóxicos.
“Mato Grosso é o estado que mais utiliza agrotóxicos no Brasil e diversos estudos já comprovaram os danos à saúde da população por conta disso. Quanto menor a distância dos locais de aplicação, maior o risco de adoecimento. É um problema de saúde pública e reduzir este limite vai expor a população, principalmente a do interior do estado. Vale dizer que este adoecimento é crônico e as doenças surgem ao longo do tempo”.

Pela Fundação Oswaldo Cruz (Fiocruz), a pesquisadora e assistente do Ministério Público do Trabalho (MPT) Karen Friedrich, destacou que os impactos dos agrotóxicos não são restritos a quem se alimenta ou trabalha nas proximidades de lavouras e propriedades rurais. De acordo com ela, 81% dos produtos permitidos no Brasil são proibidos por países da OCDE (organização mundial de 38 países de relevância no mercado internacional) e 50% na comunidade europeia. A cada 10 litros de agrotóxicos, quase sete causam câncer e danos hormonais, sendo o glifosato e o 2,4D alguns dos mais utilizados em Mato Grosso.
“Cada vez mais se terá menos conhecimento sobre os impactos na saúde e sobre medidas de proteção das pessoas ambientalmente expostas aos agrotóxicos. Com isso, não serão só os trabalhadores ou quem se alimenta desses produtos. Infelizmente, todos que moram em um estado em que a distância mínima pode ser diminuída estarão igualmente expostos a doenças”.
A responsabilidade de parlamentares sobre o aumento de veneno na mesa de famílias mato-grossenses e ao meio ambiente foi mencionada pelo pesquisador da Universidade de São Paulo (USP) e Universidade Federal do Amazonas (UFAM), Lucas Ferrante, que chamou de “falácia” os argumentos utilizados durante a audiência de que a redução do limite para aplicação de produtos não causaria prejuízos ambientais e à saúde. Outro ponto abordado pelo pesquisador foi quanto aos danos de pesticidas à biodiversidade que protege a agricultura, com a mortalidade de espécies endêmicas, mutações e até extinções. Segundo ele, os produtos não controlam todas as pragas de uma lavoura, cabendo a espécies da própria fauna e flora serem responsáveis por isso.
“A redução para 25 metros fere a proteção de comunidades do entorno, aumenta a incidência de contaminação e isso é muito bem documentado. Os deputados, se aprovarem esse projeto, terão responsabilidade sobre os danos ambientais, para a agricultura e saúde pública. Existe responsabilidade na liberação da contaminação massiva desse veneno”.
Uma pesquisa realizada pelo Neast/UFMT, em parceria com a Operação Amazônia Nativa (OPAN), sobre o impacto a povos indígenas pelo uso de agrotóxicos em lavouras que ficam próximas a seus territórios, identificou o carbofurano, proibido no Brasil desde 2017 e há mais de 50 anos na Europa e em estados americanos. Ele pode causar risco de morte após ingestão ou inalação, danos severos aos sistemas neurológico, respiratório e endócrino, malformação fetal em humanos, morte de animais silvestres e grande persistência ambiental.
Também foi encontrada atrazina, um herbicida do grupo químico triazina que tem função dessecante, proibido na União Europeia desde 2004, e o carbendazim, fungicida altamente tóxico que teve a comercialização suspensa no Brasil em 2022, após processo de reavaliação.
Projeto potencializa outras irregularidades
No campo jurídico, também participaram da audiência o promotor de Justiça do MPT-MT, Bruno Choairy, que mencionou casos de violação a direitos fundamentais e trabalhistas, dando como exemplo uma investigação na propriedade rural que mais comprou agrotóxicos em Mato Grosso e que, dentre as irregularidades, mantinha um alojamento de trabalhadores a 45 metros da lavoura, agravando a exposição aos produtos químicos.
O procurador da República do MPF-MT, Gabriel Infante, elencou ainda prioridades que deveriam ser incluídas no debate sobre a questão dos agrotóxicos, para além do distanciamento, como o uso dos produtos para a expulsão de assentados em propriedades rurais, insuficiência na fiscalização, campanhas de publicidade sobre o uso de agrotóxicos e implantação de normativas que aumentam a proteção da população e do meio ambiente. O MPF-MT já se manifestou contrário ao PL 1833/23 pelos efeitos nocivos dos agrotóxicos.
“Zerar a metragem para aplicação de agrotóxicos é expor a população da agricultura familiar a venenos. Fica cada vez mais explícita a contradição em Mato Grosso. A produção agrícola não pode abrir mão, por conta da ganância de mecanismos que protegem o meio ambiente e a saúde humana e isso traz reflexos lá fora. Organismos internacionais têm preocupação com a qualidade do que é produzido aqui. É um recado negativo para a própria economia de um estado baseado na agricultura”, avaliou o deputado estadual Lúdio Cabral (PT).
Em novembro de 2024, a Human Rights Watch, organização internacional de direitos humanos com cerca de 400 membros distribuídos por vários países, divulgou um material especial sobre o PL 1.833/2023. O texto alertou para a ameaça do projeto à saúde e aos meios de subsistência no estado.
A sessão ordinária da ALMT que pode colocar o projeto em segunda votação tem início às 9h desta quarta-feira (19). Se for aprovado, o PL segue para sanção ou veto do governador Mauro Mendes.
Assista a audiência pública na íntegra e veja todos os depoimentos, clicando AQUI.
*Com informações da OPAN
Fotos: Luciano Campbell/ALMT